Joana Ferreira Duarte tinha 16 anos quando se sentiu gorda pela primeira vez. Começou a comparar-se com as amigas e deu início a uma dieta sem qualquer tipo de acompanhamento profissional. No entanto, o corpo entrou num processo de "ressaca", privado de tudo a que se proibia, o que a levava a comer compulsivamente, situação tecnicamente designada de transtorno de compulsão alimentar.

"À frente dos outros, nomeadamente dos meus amigos e colegas, eu não comia ou comia pouquíssimo, e assim que saía de ao pé das pessoas e ficava sozinha, comia tudo aquilo que não tinha comido antes", conta Joana, agora com 35 anos, e mais conhecida como "Perna Fina", à MAGG.

Na adolescência, tinha dificuldade em comer saudável. Hambúrgueres, incluindo os da cadeia McDonald's que tinha perto da escola, eram regulares, bem como os bolos, torradas, ou folhados. "Tudo o que se possa imaginar", diz.

"Como estava completamente sôfrega com a comida, esfomeada, porque passava o dia inteiro a pensar naquilo que ia comer, tinha quase estratagemas para o fazer. Quase como um alcoólico que traça planos para comprar mais bebida sem ninguém estar a ver. Portanto, quando chegava à hora H comia muito, muito, muito. Isto foi um ciclo que eu comecei e ainda dura", refere Joana, acrescentando que acha que esta luta vai ficar para sempre.

A verdade é que um transtorno de compulsão alimentar pode mesmo prolongar-se no tempo. "Os especialistas não falam em cura para o distúrbio, mas apontam algumas boas práticas de controlo", revela à MAGG a psicóloga Júlia Machado, docente do Hospital Lusíadas Porto, bem como Marta Negrão, estagiária na mesma unidade.

Afinal, o que é um transtorno de compulsão alimentar?

"Considera-se um transtorno de compulsão alimentar quando existem episódios recorrentes de consumo de grandes quantidades de alimentos num curto espaço de tempo com sensação de perda de controlo", afirma a psicóloga, acrescentando que, a nível clínico, é considerado transtorno de compulsão alimentar quando o diagnóstico indica um episódio de compulsão alimentar pelo menos uma vez por semana durante três meses e uma sensação de falta de controle sobre a alimentação, bem como a presença de mais do que três pontos de uma lista de sintomas.

Entre estes estão o ato de comer muito mais rápido do que o normal, comer até se sentir desconfortavelmente cheio, comer grandes quantidades de um alimento mesmo sem fome, comer sozinho por vergonha, sentir-se nauseado, deprimido ou culpado depois de comer excessivamente, e pode ir até comer alimentos "estranhos" como arroz cru ou um pote de manteiga.

O caso de Joana é exemplo disso mesmo. "Eu vivi amargurada nesta dor de não querer ter este corpo, e quanto mais gorda estava, mais comia, mais infeliz ficava. É um ciclo", diz. "Tudo o que eu não queria era ser gorda", porque essa era uma imagem que não correspondia às figuras que admirava na adolescência, como a cantora Britney Spears. "Aquilo é o padrão que nós tínhamos", acrescenta a Perna Fina.

A adolescência é um período delicado para o desenvolvimento de transtornos alimentares, como a compulsão, mas também pode acontecer nos primeiros anos da vida adulta. Contudo, é apenas por volta dos 35 a 40 anos que a maioria dos pacientes procura atendimento médico, conforme indica a psicóloga Júlia Machado.

A especialista enumera alguns sinais — alguns semelhantes aos de outros transtornos alimentares, como a anorexia — que podem servir de alerta para amigos e familiares que suspeitem de uma situação de transtorno de compulsão alimentar:

  • Obesidade associada à clara e manifesta insatisfação com o peso;
  • Frequentes flutuações de peso ao longo de meses ou anos;
  • Uso de roupas muito largas para esconder a aparência física;
  • Sintomas depressivos;
  • Isolamento social;
  • Baixa autoestima;
  • Presença de comida escondida dentro do quarto;
  • Restos ou migalhas de comida espalhados por locais inusitados da casa, como banheiros ou armários;
  • Desaparecimento frequente de comida da dispensa ou do frigorífico.

Já quanto às causas, a idolatria por figuras com o chamado "corpo perfeito", ou comentários e ofensas na escola podem ter algum peso, como aconteceu com Joana Ferreira Duarte, mas há mais fatores por detrás deste transtorno. "As causas podem ser diversas e normalmente estão associadas a crises de ansiedade ou problemas hormonais, dietas muito restritivas e grandes perdas de peso, bem como perda de emprego, morte de um ente querido, situação de stress emocional grave, etc", explica a psicóloga, acrescentando à lista o facto de poder resultar também de uma soma de fatores genéticos, psicológicos e ambientais.

Todos comemos emocionalmente, mas quando é que isso se torna um problema?

Joana começou o blogue em 2013 e criou a conta de Instagram anos mais tarde. O nome, Perna Fina, não foi difícil de escolher. "No Natal de 2013 jurei a mim mesma que ia perder peso. Prometo isto na cozinha da minha avó, que é uma perna fina pura — uma alcunha da minha família paterna, que são pessoas com um feitio muito peculiar, mas que têm as pernas muito finas e as 'mamocas' muito grandes, no caso das mulheres. E a minha mãe dizia-me muitas vezes, quando eu tinha assim momentos de raiva, 'não sejas perna fina'. Isto era um contra-senso e tem graça, porque eu queria ter a pena fina, ser magra", conta à MAGG.

O nome tem então duplo sentido, o de motivar Joana a chegar a uma perna mais fina, e a ligação à família. Uma família, ou comunidade, acabou também por ser criada através do blogue. "Sempre que punha um texto mais emotivo ou duro sobre o meu passado, recebia dezenas de mensagens a dizer 'obrigada por expores aquilo que vivo às escondidas e não sei transmitir'", refere.

Agora, na sua conta de Instagram,  não partilha apenas histórias. Sente quase uma responsabilidade social em apoiar estas pessoas que a leem. "Continuo este processo porque sinto que realmente fala-se muito da anorexia e bulimia, mas muito pouco da compulsão alimentar. É um problema muito sério, mas a verdade é que está enraizado na nossa sociedade, que enquanto uma pessoa come, está bom de saúde. E no fundo, a compulsão esconde questões psicológicas, emocionais, relacionais, fortíssimas", refere Joana.

Comer não é um problema, mas há que estar atento aos sinais que apontam para um descontrolo. "Quase todos já tivemos um ou mais episódios nos quais acabámos por comer muito mais do que o necessário para matar a fome e depois ficámos-nos a sentir empanturrados e arrependidos. Se esses episódios de alimentação compulsiva são frequentes, incontroláveis e despertam no indivíduo uma intensa sensação de culpa, angústia e vergonha, então já se considera um problema", explica a psicóloga Júlia Machado.

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Tudo se agrava pelo facto de os transtornos de compulsão alimentar não surgirem de forma isolada. De acordo com vários estudos, existem outros distúrbios associados, como é o caso de fobia específica, presente em 37% dos pacientes, fobia social e depressão, em 32%, e, com taxas mais reduzidas, o transtorno obsessivo-compulsivo, 10%.

Os transtornos não são todos iguais

Os transtornos alimentares são de alguma forma idênticos pelos seus sintomas, mas há comportamentos que vincam as diferenças entre cada um deles. "Os transtornos alimentares são caracterizados por uma perturbação persistente na alimentação ou no comportamento com a alimentação. Por sua vez, o transtorno de compulsão alimentar é caracterizado pelo consumo repetido de quantidades excecionalmente grandes de alimentos acompanhado de um sentimento de perda de controle durante o episódio de compulsão alimentar", explica Cristina Teixeira, nutricionista no Centro Multidisciplinar de Tratamento da Obesidade do Hospital Lusíadas Porto.

A questão que se prende com os transtornos de compulsão alimentar, que levam a que a sociedade ainda não compreenda esta perturbação, é como é que alguém não consegue controlar o apetite? Como é que se explica que alguém consiga comer até ficar com uma má disposição? As respostas a estas questões dizem respeito, acima de tudo, a fatores psicológicos.

"O apetite é controlado tanto por fatores físicos como psicológicos e ambientais. Reconhecer que comer satisfaz uma necessidade emocional (por exemplo, um mau dia de trabalho) é o primeiro passo", refere Cristina Teixeira. Contudo, nem sempre isso é possível e há dois nomes que distinguem e denominam aquilo que acontece sem muitas vezes ser reconhecido como um problema.

Hiperorexia designa um aumento anormal do apetite, transitório ou permanente que pode ser causada por condições como ansiedade, síndrome pré-menstrual, ou hipertireoidismo. Já a hiperfagia está relacionada com "a vontade irresistível de comer, sem real sensação de fome", explica a nutricionista, acrescentando que, neste último caso, além de alterações de quantidade há transformações qualitativas, chamadas perversões do apetite, sendo a principal a alotriofagia — apetência por substâncias não nutritivas e habitualmente não comestíveis.

Embora controlar uma compulsão alimentar não seja tarefa fácil, a nutricionista Cristina Teixeira revela algumas dicas que podem ajudar, sendo a principal "tentar satisfazer essa necessidade com algo que não seja comida e tentar optar sempre por escolher alimentos nutricionalmente ricos e pouco calóricos". Como sempre, a par de uma alimentação equilibrada, vem a hidratação, que não só é importante para o corpo, como para o controlo do apetite.

"Se beber água durante e depois das refeições, os sucos gástricos diluem-se e o grau de acidez do estômago diminui. Isto provoca um abrandamento do processo de digestão, através do qual se prolonga a sensação de estômago cheio", afirma a especialista.

O papel da reeducação alimentar

Há alguns anos, Joana Ferreira Duarte começou a ser seguida por especialistas, embora sem grande sucesso.

"Fui a várias nutricionistas e realmente nunca ninguém olhou para esta dimensão emotiva da minha alimentação porque estavam preocupadas em contar calorias e emagrecer. A verdade é que eu emagrecia, só que depois deixava cair aquele peso todo outra vez", conta Joana. Foi então que, aos 28 anos, 12 anos depois de começar a consultar nutricionistas, que descobriu aquela que seria a melhor solução para o ioiô de aumento e perda de peso, bem como das compulsões alimentares. O foco estava na reeducação alimentar.

No fundo, a reeducação, explica a nutricionista Cristina, não é mais do que saber comer. "Há formas de silenciar a barriga e aquela voz dentro da cabeça que lhe manda ir comer o bolo mais próximo. E essa forma é mesmo comer! E a horas certas. Só que deve escolher alimentos com baixos índices calóricos".

Entre os alimentos que se enquadram nestes parâmetros estão as maçãs, sopa, nozes, e a especialista reforça ainda os benefícios de um "pequeno-almoço de 300 calorias e com até 39 gramas de proteínas vai ajudar o metabolismo a sentir menos necessidade de ingerir mais calorias ao longo do dia".

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Contudo, a reeducação alimentar não basta. É preciso tratar o problema de raiz, já que é no sistema nervoso que está o cerne da questão que leva o cérebro a atraiçoar esta forma de apetite não saudável.

"O apoio psicológico e a psicoterapia, nomeadamente cognitiva comportamental, são fundamentais para trabalhar todos os aspetos quer emocionais quer comportamentais e os pensamentos negativos inerentes", revela a psicóloga Júlia Machado, acrescentando que o apoio destes especialistas deve ser articulado com um nutricionista para garantir que no processo de recuperação e reeducação alimentar não haja deficiências nutricionais.

"Acresce que as todas as terapias não convencionais podem ajudar no processo na medida que existem técnicas que promovem a redução de stresse, nomeadamente o mindfulness, ioga, que podem ajudar na ansiedade e depressão", acrescenta.

Mesmo com uma equipa multidisciplinar a encaminhar o tratamento da compulsão alimentar, o percurso não está livre de altos e baixos. "A quarentena foi vivida de compulsão. Foi um período muito difícil para mim: significou um casamento adiado, que é uma coisa com a qual eu sonho desde miúda, e não me pude despedir-me dos meus alunos de há quatro anos por quem eu tinha profundos sentimentos de gratidão. Tudo isto fez com que eu ficasse completamente ansiosa, com a necessidade de fazer bolos todos os dias e de os comer", revela Joana, que até à quarentena não tinha episódios de compulsão há cerca de um ano, embora reconheça que neste caso foram muito mais conscientes porque não os escondeu, ao contrário de outros tempos.

Os episódios de compulsão arrastaram-se até ao momento em que disse "chega" e voltou a focar-se no seu percurso. Percurso esse que já passou por uma época dedicada ao crossfit e o corpo mais magro que já alcançou e, posteriormente, dez quilos a mais "de amor" e não de compulsão alimentar, diz, após se ter apaixonado no ano passado e querer viver tudo o que podia, incluindo as idas a restaurantes, com o seu futuro marido. Quer nessa fase, quer na quarentena, a Perna Fina nunca escondeu essas transformações no corpo — foi partilhando tudo com os seguidores.

Atualmente as prioridades de Joana são outras e é nesse sentido que tem feito terapia. Quer ter consciência daquilo que aceita e não aceita em si mesma ou do que significa a contentação com o próprio corpo. "O percurso que estou a mostrar agora é exatamente o de 'muito bem, houve uma fase em que quiseste muito ter abdominais e tiveste um corpo absolutamente atlético em 2018. Podias fazer o que quisesses dele'. E hoje em dia não é isso que pretendo e é para ai que quero caminhar", revela.

Esse processo tem sido feito em conjunto com os seus 16,5 mil seguidores no Instagram. "Algumas pessoas disseram-me 'olha, quando ficaste super atlética passaste uma imagem muito arrogante e eu deixei de te seguir e agora estou aqui outra vez'. E isso também me fez pensar muito sobre a minha postura ao ser magra, porque eu nunca lá tinha estado e se calhar deslumbrei-me um bocadinho", revela à MAGG.

Mas Joana não se tem limitado a partilhar. A 24 de junho quis também receber os testemunhos de quem está do lado de lá do ecrã, e que a acompanha todos os dias, há mais ou menos tempo. Numa publicação de Instagram pediu então que escrevessem sobre as "maiores dificuldades na hora de 'sentar à mesa'”. E as inúmeras respostas não tardaram, quase sempre relacionadas com as dúvidas sobre o que comer.

A questão que Joana lançou foi no sentido de perceber o que é que transtorna outras pessoas que passam pelo mesmo problema, de forma a poder aconselhar, e, acima de tudo, normalizar o problema para que não haja vergonha em procurar ajuda, que é aquilo que acontece em vários casos, tal como refere a psicóloga Júlia Machado. "Algumas pessoas não consideram o transtorno uma condição médica válida e, portanto, não procuram ajuda médica", acrescenta a especialista.

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Contudo, a Perna Fina deixa um ponto assente: "Sou complementarmente contra aquelas páginas de Instagram de miúdas que de repente se tornam obesas e dizem que se tornam obesas porque se aceitaram. A obesidade é uma doença, portanto eu nunca vou promover esse tipo de aceitação", afirma.

Os limites para quem está de fora

Um transtorno de compulsão alimentar é individual, mas no fundo, não é vivido a sós. O ambiente social pode ser outra das condicionantes à resolução deste problema. Muitos de nós já ouvimos comentários às calorias que estávamos prestes a ingerir com uma bolacha com chocolate de um qualquer pacote ou à pouca comida que colocámos no prato. Se para algumas pessoas é visto como uma piada, para outras, embora não transpareçam, é um ataque que fica a ecoar na cabeça.

É por isso que a ponderação na comunicação, que acontece de forma natural no dia a dia, tem especial valor no que diz respeito à alimentação, ainda que isso não signifique que tenha de se remeter ao silêncio. Há alturas em que fazer um alerta pode ser fundamental, mas o segredo está na forma como se diz.

"Para quem está de fora, talvez antes de dizer algo seja importante perceber a frequência dos possíveis episódios, se se trata de uma situação pontual ou não, se a pessoa está a lidar com alguma situação difícil na vida. Nunca fazer reparos nem em julgamento, porque não sabemos qual o verdadeiro motivo e sofrimento que a pessoa está a passar", destaca a psicóloga.

Para lá dos comentários, o que está ainda pouco presente na sociedade é o próprio conceito de transtorno de compulsão alimentar. Os problemas com a alimentação são ainda vistos como algo fútil, paradigma que Joana acredita que tem que mudar rapidamente.

"Não considero que o meu problema assente na futilidade na medida em que me privou de viver uma vida em liberdade. Portanto, isto vai muito alem de ser vaidosa", remata a Perna Fina.