Quando se soube que a RTP iria estrear "Pôr do Sol", um novo formato aparentemente semelhante ao de uma novela, a ideia parecia estar em contraciclo com aquela que era a posição do canal público de deixar essas produções "para os canais comerciais", palavras de José Fragoso, diretor de programas da estação. À partida, e analisando o formato com base no pouco que se sabia na altura (como os atores envolvidos ou a premissa), tudo indicava ser uma novela.
Quando o projeto foi apresentado, esta quinta-feira, 29 de julho, à imprensa, a novela deixou de o ser e essa ideia de contraciclo não podia estar mais longe da realidade. A divulgação a conta-gotas, sabe-se agora, foi mais ou menos planeada.
O canal anunciou o essencial e, depois, fez por não alimentar as notícias que foram saindo e que criaram alguma expectativa sobre o que vinha aí.
"Quando estamos a preparar um projeto desta natureza, que esteve em gravação durante sete semanas, há sempre uma curiosidade muito grande em saber o que é. Saíram algumas notícias que diziam que ia ser uma novela com 100 episódios, quando, na verdade, só tem 16. Achei divertida a especulação, que também teve muito que ver com o facto de ter atores da SIC e da TVI, mas o nosso objetivo sempre foi criar séries de ficção diversificadas e com focos diferentes", explica José Fragoso à MAGG.
"Chamámos-lhe mininovela por divertimento"
A ideia, apresentada à RTP pelo realizador e produtor Manuel Pureza, coincidiu com a vontade do canal em "fazer um conteúdo de verão, mais adequado a uma grelha de programação para esta altura do ano, que tivesse uma equipa cujo dinamismo garantisse um conteúdo final muito criativo", refere o diretor de programas.
Houve riscos associados. Não só porque o investimento numa série é sempre muito superior àquele que é feito para a produção de uma novela, mas porque na altura "em plena pandemia, era difícil fazer planos" e dar respostas concretas sem saber muito bem o que seria das nossas vidas dali em diante.
"Acabou por acontecer porque achámos que fazia sentido o investimento. O Manuel [Pureza] conseguiu o quadro temporal para gravar e estamos muito contentes com o objeto porque se enquadra nos princípios com os quais nos identificamos", como o da inovação.
A aposta marca também o regresso a um conteúdo emitido em linha — como aconteceu com produções como "Bem-Vindo a Beirais", que esteve em emissão desde maio de 2013 até março de 2016; e "O Sábio", entre janeiro de 2017 e junho de 2018.
"À exceção dos concursos da tarde e da noite, não temos mais conteúdos em linha e, durante este período em que a série estiver em emissão, os espectadores vão conseguir seguir a história de segunda a sexta-feira. Quem a acompanhar, perceberá os tiques, os estereótipos e os clichés da novela. Chamámos-lhe mininovela por divertimento, mas quem a vir vai perceber que está perante uma série", garante o diretor de programas da RTP.
Sobre se a escolha dos atores facilmente reconhecidos pelo público (como Diogo Amaral, Gabriela Barros, Manuel Cavaco ou João Catarré) também fez parte da estratégia para aumentar a especulação sobre que tipo de produto seria, José Fragoso tem outra explicação: o facto de, em Portugal, "ser muito difícil ter um bom elenco que não tenha passado por novelas". Mas di-lo sem qualquer preconceito ou julgamento.
"Ainda bem que há esse percurso, porque da mesma maneira que os atores fazem novelas, fazem séries, filmes e outros conteúdos." Ganham experiência, dinamismo e à vontade para trabalhar em registos muito diferentes e de características várias.
A RTP como a casa de "ficção que perdure"
Em média, José Fragoso diz que, por ano, estão a ser produzidas 12 séries para a RTP. Neste momento, haverá outras tantas na gaveta que só verão a luz do diz "lá para 2024", mas a ideia base é sempre a mesma — a intemporalidade.
"Não conseguimos prever o futuro, mas quando pensamos em ficção na RTP, é numa ótica de fazer ficção que perdure e que as pessoas voltem a ela daqui a dez ou 20 anos. Esta ideia de que estamos a investir em património audiovisual é muito importante", explica, justificando o investimento cedido às produções do canal público.
É que ao fazer uma novela, exemplifica Fragoso, já se sabe que o formato "se esgota" no momento em que termina. É substituída por outra, portanto. Nas séries, a história é outra.
"A 'Mistérios de Lisboa' [o filme de 2010 que foi, depois, transmitido em formato série na RTP com a divisão em seis episódios], com a Maria João Bastos, por exemplo, é uma série que já correu o mundo inteiro e que, daqui a 20 anos, por ser uma lição de cinema e de televisão, continuará a ser vista."
É nesse exemplo que se baseia para fazer um balanço daquilo que a RTP tem oferecido aos espectadores que lhe continuam fiel numa altura em que a concorrência é cada vez maior. Não só nos restantes canais, mas até no streaming que cresceu exponencialmente com a chegada da pandemia.
Desde o final de 2020 até agora, a RTP contou com uma aposta diversificada, em tema e formato, na sua grelha. Desde o "5 Para a Meia-Noite", às séries "Até Que a Vida Nos Separe", "Vento Norte" e "Crónica Dos Bons Malandros", a programas como "É Urgente o Amor", de Catarina Furtado, "I Love Portugal", que regressa este domingo, 1 de agosto, e "Programa Cautelar", de Filomena Cautela, houve (e há) de tudo um pouco para todos os gostos.
A ideia parece ser essa, tal como nos explica. Mas fazer televisão é também saber trabalhar com o tempo. "Entre o momento em que surge uma ideia, ela se desenvolve e passa para os espectadores, demora entre seis meses a dois anos. Temos projetos em curso que só vão acontecer lá para 2024, mas esse tempo é necessário para que as equipas criativas tenham condições", diz.
O objetivo é permitir que o trabalho amadureça e os "guiões fiquem mais sólidos". Além de se orgulhar da grelha que teve e vai ter (embora, para já, seja cedo para falar do que acontecerá depois do verão, dados que prefere guardar para o que, espera-se, será o evento dedicado às novidades para a temporada da rentrée televisiva), José Fragoso ressalva ainda que, na RTP, um conteúdo não se esgota no momento em que termina.
"Tentamos que qualquer conteúdo nosso seja levado a festivais e circule internacionalmente. Todo esse processo precisa de tempo, mas creio que as equipas que temos já perceberam que, se têm uma ideia, vale a pena apresentá-la à RTP", diz. Prova disso, exemplifica, é o facto de o programa de Filomena Cautela ser uma ideia original sua, tal como o de Catarina Furtado o foi.
"Vale sempre a pena apresentarem-nos as ideias. Numas alturas, podemos dizer que não, noutras podemos dizer sim. Quando caminhamos para um sim, o que se segue é que o envolvimento, o acompanhamento e até o entusiasmo é partilhado por toda a gente envolvida."
Nas suas palavras, é esse o ingrediente fundamental para que as equipas sintam não só que têm "toda a liberdade criativa, mas o à vontade para apresentar ideias originais" e que estejam em concordância com aqueles que são os principais pilares da RTP — a originalidade, a veia alternativa, quase disruptiva e diferenciadora que desestabiliza, mas também educa.
A criatividade de Filomena Cautela e o regresso de "Programa Cautelar"
Uma das grandes apostas deste ano da RTP foi "Programa Cautelar", estreado a 5 de junho, embora a data inicial fosse 29 de maio. A confiança no formato foi, desde o primeiro dia, evidente, com José Fragoso a caracterizá-lo, na altura, "como um dos elementos centrais da televisão portuguesa". Ainda ninguém tinha visto o formato em Portugal, mas era assim que Fragoso, num discurso que deambulava entre o institucional e o elogioso, o descrevia.
Com a primeira temporada terminada, o diretor de programas da RTP diz que o formato "correspondeu completamente às expectativas", somando uma "média de 600 mil espectadores na televisão" por emissão. Mas mais do que isso, fala num formato que "teve e continua a ter uma longevidade na RTP Play [a plataforma digital de streaming com canal], com dezenas de milhares de visualizações" já contabilizadas.
Em termos práticos, reforça, "estamos a falar de mais de 30 mil pessoas que, por semana, foram vendo o programa e continuam a ver".
Os dados, diz, provaram que um programa destes, muito arriscado, tinha pernas para andar. A existência de risco tem que ver, segundo explica, com a inexistência de uma matriz fixa e imutável. "Era um projeto construído programa a programa, que tinha uma sólida componente de pesquisa e de investigação. Um programa daqueles não podia ter um erro num número, por exemplo". Caso contrário, arriscava-se o descrédito total por parte dos espectadores, potenciado pela rapidez com que as redes sociais tornam uma indignação viral.
Juntar isso com uma forte componente de "inovação, estimulação e divertimento", fazendo-o resultar mesmo quando , no ar, estavam "campeonatos de futebol e jogos da seleção nacional", foi surpreendente. "Fez um percurso excecional no linear e no não-linear", atribuindo os louros a toda a equipa e a Filomena Cautela.
"Não há conteúdo nenhum que a Filomena Cautela não possa fazer porque tem uma capacidade de trabalho, uma criatividade e uma energia extraordinária".
Prova disso, diz, é o facto de, "há coisa de um mês", Cautela ter estado a "apresentar os prémios Play, a fazer o 'Programa Cautelar' e a gravar o 'I Love Portugal', em que tem uma química impressionante com Vasco Palmeirim." Por isso, faz sentido pensar na possibilidade de ver a apresentadora em novos formatos — além daqueles em que já está confirmada. Sobre se estão ou não a decorrer conversas nesse sentido, o diretor de programas esquiva-se, dizendo que, nesta fase, o foco está "em fazer mais episódios do 'Programa Cautelar'."
O "Programa Cautelar" insere-se na categoria de formatos que, espera Fragoso, daqui a "uns 20 anos possamos estar a ver e a achar uma coisa magnífica, enquanto património audiovisual desta época". Há confiança na aposta, tanto que o programa foi renovado para uma segunda temporada.
Sobre se regressará ainda este ano, José Fragoso diz que, talvez, não. "Vamos prepará-lo ainda este ano, mas no ar, provavelmente, só no início do próximo."